terça-feira, 3 de junho de 2008

De volta: o apostolado

Este pobre blog abandonado! Se eu tinha algum leitor, acho que desistiu. Mas tenho esperança de que um dia estes rabiscos virtuais ainda sirvam para algum desavisado (como todo mundo, por sinal) que um dia descobre ter um caso de câncer na família. Infelizmente parece que a doença não vai arredar pé e vai continuar assombrando este século XXI, pelo menos em sua primeira metade. Então, mais de um mês após o último post, depois de um computador no conserto e outra epopéias, voltemos a fevereiro de 2008 e ao período de internação da Fabíola, que a esta altura parece estar a séculos de distância.

Cinco dias depois da internação consegui passar minha primeira noite em casa. Foi a única noite em que deixei a minha mãe dormir com ela. Sabíamos que já estava quase no dia da alta, mesmo. Em todo caso, como eu sabia que voltaria ao hospital (pelo menos para a alta da Fabíola no dia seguinte), resolvi estender o apostolado que comecei no hospital. Pois é: o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, mais precisamente o quarto da Fabíola, foi o templo da minha primeira missão como Ministra Extraordinária da Sagrada Comunhão.

Antes de ir adiante com a história, a expressão de quatro palavras logo acima exige uma explicação a católicos e não-católicos. Os católicos chamam essa função de "ministro da Eucaristia" e os não-católicos não tem idéia do que seja. O ministro é uma pessoa leiga (ou seja, que não foi ordenada, como o padre, e por isso se chama "extraordinário") que ajuda o padre a distribuir a comunhão. Normalmente eu ajudava nesta distribuição durante a missa da qual participo, mas a verdadeira função do ministro é levar a comunhão para fora da igreja, às pessoas que não podem sair de onde estão para participar da missa. Exatamente o que estava acontecendo com a Fabíola e com a minha mãe. Fiz isso todos os dias em que a Fá esteve internada, com exceção de sábado. Uma lembrança particularmente querida deste meu apostolado foi a terça-feira em que a Fá mudou totalmente de expressão depois de receber a comunhão. Todo mundo que estava no quarto notou. Acho que só aquilo já valeria os dois anos de "ministério" que recebi de responsabilidade da Igreja. A comunhão foi verdadeiro remédio para ela.

Além dela fiz meu apostolado com a dona Maria de Lourdes Ribeiro. Eu estava saindo do hospital para dormir em casa quando, passando pelo corredor, vi um quarto com a porta aberta e uma imagem de S. Judas sobe a escrivaninha. Entrei e vi uma senhora no leito junto com dois homens mais jovens (que eu logo vi serem filhos dela). Perguntei se ela era católica e se gostaria de receber a Comunhão no dia seguinte. Como ela não podia deglutir nada, nem água, fiquei de levar para ela uma água benta vinda da fonte de Lourdes, na França, e fazer uma oração no quarto dela. Com a lembrança que o nome dela evocava, a providência de Deus faria chegar aquela água do Hemisfério Norte diretamente para o conforto da dona Maria de Lourdes . Aliás, mais apropriado seria dizer que a providência de Deus fez chegar o conforto a todos nós, principalmente eu mesma. Mas isso é assunto pra outro post. Agora, como naquela longínqua quarta-feira, vou dormir o sono dos justos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Piaf

Já que mencionei o apelido da Dona Nhanhã que foi dado à minha irmã enquanto ela tinha que andar curvada, devo confessar que dei a ela outro apelido maldoso depois de ver o filme Piaf -- Um Hino ao Amor: Edith. Só que a pobre da Edith Piaf parece que andou curvada a vida toda, enquanto minha irmã já está com a postura legal. A Piaf, essa sim, comeu o pão que o diabo amassou. Perto do que ela sofreu a situação da Fabíola fica até amenizada. Sempre tem alguém pior do que a gente, mesmo.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

... e dias

Os oito dias em que a Fá ficou no hospital também foram repletos de emoções. A começar pelas visitas. No dia seguinte à cirurgia, um domingo, houve aquilo que meu amigo Edu chamou de "o beija-mão da Fabíola". Havia um verdadeiro desfile de visitas. Houve momentos em que havia mais de uma dezena de pessoas no apartamento da pobre. Havia flores de todas as cores, cheiros e tamanhos -- assim como os chocolates, que a Fá logicamente não conseguia comer. As visitas acabaram se alimentando umas às outras (e também aos acompanhantes, lógico). Houve também frutas, pães e sucos. Com todas aquelas iguarias, tinha horas que eu comia só mesmo pra não deixar estragar. Em excesso, mesmo as iguarias ficam sem sabor em determinados momentos.

Fica uma dica para todos os leitores que vão visitar pacientes em hospitais e maternidades: por favor, façam uma visita curta. Quinze minutos é o ideal. E não estranhem se a pessoa estiver completamente baqueada, sem vontade de conversar. Em geral nem é legal conversar muito porque a pessoa deglute ar e isso pode provocar dores na barriga. Só que a minha doce irmã não sabe fingir que está dormindo nem dar respostas monossilábicas. Houve momentos em que a expressão dela denunciava o cansaço, mas em outros a boa educação que meus pais lhe deram não denunciaram nada. E algumas visitas iam ficando por uma hora ou mais, puxando conversa... E minha tia Zezé ia dando indiretas (que não funcionavam)... Em geral acho que não é o momento, a não ser que o paciente reclame de tédio e insista para a visita ficar depois dos tais quinze minutos. Via de regra a pessoa está cansada, desconfortável, com dor, com o corpo e as emoções revirados e se sentindo feia. Houve momentos até, depois que saíam do quarto as pessoas da família, com quem ela tinha toda a liberdade e podia fechar a cara, em que ela dizia: "Graças a Deus! Enfim sós."

O primeiro banho da Fabíola foi inesquecível. Em momento nenhum naquele hospital ela gritou ou chorou de dor, mas eu via ela espremer os lábios e suar. A auxiliar de enfermagem a revirou mais do que devia. Ela deve ter visto estrelas, coitada. Outra dica pros acompanhantes de pessoas que fizeram uma TRAM (cirurgia reconstrutora da mama que usa gordura e músculo abdominais): só deixem os auxiliares de enfermagem passarem um paninho (mais nada) no corpo do paciente nas primeiras 24 horas após a cirurgia. Ou então nem deixem dar banho.

Dois dias após a cirurgia ela devia ficar sentada pela primeira vez por alguns minutos e depois dar uns passinhos. O mal-estar era gigantesco a cada vez que ela se sentava na cama. Não conseguiu andar, mas o médico deu uma bronca: se ela não desse uns passinhos mesmo morrendo de dor e mal-estar naquele dia ia ter que fazer fisioterapia pra recuperar a qualidade da respiração. Louco, não? Graças à ajuda e segurança de uma auxiliar de enfermagem fofíssima chamada Florence a Fabíola não só conseguiu dar sua meia dúzia de passos, como se sentiu melhor depois de se sentar na poltrona do quarto. É claro, ajudou o fato de que o Alim, ao vê-la curvada, apoiada no suporte de soro, de camisola florida, meia elástica, pantufa e drenos pendurados no suporte, exclamou: "Dona Odete!" Foi o primeiro nome que veio à cabeça dele que soaria familiar num asilo. Mas meu pai é que deu a versão definitiva do nome idoso: dona Nhanhã.

O telefone também foi um caso à parte. Não parava de tocar. O primeiro telefonema, via de regra, me acordava antes das 8 da manhã depois de uma noite pra lá de conturbada. Minha voz cavernosa não chegou a intimidar os interlocutores matutinos. Não havia um almoço, jantar ou lanche que também não fosse interrompido. Contei as mesmas histórias várias vezes. Mas gostei muito de ver o carinho e o cuidado das pessoas. Antes carinho demais que de menos.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Noites...

Será que quero mesmo ter filhos?

Comecei a pensar nisso a partir da primeira noite pós-cirugia da Fabíola. De lá pra cá tem sido uma sucessão de noites mal-dormidas que parece infindável. E isso porque a Fá acorda à noite e precisa de cuidados rápidos. Imagine um ser berrando no meio da madrugada, a cada 2 horas em média querendo mamar no meu peito. Será que ainda tenho pique pra isso nesta altura da vida? Meu amigo Edu Cruz diz que sim, mas sinceramente... Tô brincando, lógico. :)

As noites no hospital foram as piores. Na primeira noite a pobre da Fá não se agüentava de dor... no calcanhar! Quem diria? Um músculo abdominal despregado e "dobrado", um peitoral cortado e uma mama a menos e a menina tinha dor no calcanhar. Segundo os médicos foi porque ela ficou com os pés imóveis numa mesma posição por muito tempo. O fato é que a dor era tanta que ela me pediu pra fazer massagem no meio da noite pra conseguir dormir. Depois tem os enfermeiros que entram e saem, verificam a pressão e a temperatura, dão remédios, perguntam como ela está. Três dias depois tiraram a sonda. Aí foi a maratona da comadre. Não bastasse esse castigo que é ter de usar uma comadre, a medicação intra-venosa com soro fazia a Fabíola produzir um xixi "tele-sena": de hora em hora. A quarta-feira à noite, única noite que minha mãe passou com ela (porque insistiu demais) foi a pior: um xixi a cada meia hora. Cronometrado. O que demorou mais foi 40 minutos depois do anterior.

De volta pra casa a saga continua. Até hoje, mais de dois meses depois da alta, ela ainda não pode deitar nem se levantar da cama sozinha por ordens médicas. Tem noites em que dorme direto, mas tem outras em que ela precisa fazer o que ninguém pode fazer por ela -- mas necessita de uma mãozinha. A comadre ainda está em uso. Pensamos até em personalizá-la com uma Hello Kitty ou uma Betty Boop pra ficar com a cara da dona, mas tenho a ligeira suspeita de que as fábricas de comadres não fazem isso...

Muitas outras noites (inclusive aquelas logo depois da aplicação da quimioterapia) têm mais um agravante: remédios que têm de ser tomados às 2, 3 ou 4 da manhã. Ou seja: se a Fá nasceu de novo com sua vitória sobre o câncer, a fase de recém-nascida vem com todos os "brindes" que normalmente envolvem os primeiros meses de vida. Sabemos que não é fácil. Mas que vale a pena, vale!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Cirurgia - parte I

Este blog está ficando muito atrasado. Já faz dois meses que o Alim e a Fabíola passaram por suas cirurgias, e aqui estou eu tentando lembrar as emoções desses dias. Vou ter que resumir pra poder chegar logo ao frescor das experiências atuais.

O que posso dizer é que quando a Fabíola foi ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz para a mastectomia, que aconteceu no dia 09 de fevereiro, parecia que ela ia pra uma maternidade. Lá se foi toda a família Buscapé com ela, além do Fernando (namorado dela) e da nossa amiga Lilian, que deu uma carona pra mim e pro meu pai. É claro que houve um pequeno stress relacionado ao convênio antes da internação, mas se não houvesse o convênio não teria cumprido bem o seu papel de encher o saco dos associados. O bom é que, a partir de um dado momento, a briga ficou a cargo do RH da empresa onde a Fá trabalha. Desse abacaxi eu me livrei por um bom tempo.

A Fá chegou ao hospital cercada de carinho, flores e presentes. Nem sei se ela tinha consciência de que era tão amada pela família e pelos amigos -- e que os médicos eram tão fãs dela! Nosso querido dr. Alexandre disse que dava gosto tratar dela, pois era uma pessoa muito "pra cima".

Enquanto minha pobre mãe ficava no apartamento dela no hospital, os outros fomos "distrair" meu pai com um almoço no Bixiga. Na idade dele (77 anos) melhor não se envolver muito. A dupla cirurgia terminou por volta das 22h30. Fomos muito bem tratados no hospital pelo corpo de enfermagem e todos os médicos passaram no apartamento depois de suas respectivas cirurgias pra dizer como tinha sido. Se os médicos em geral soubessem o quanto eles fazem bem a uma família apenas com esse gesto jamais deixariam de fazê-lo. Pena que nossos queridos são exceções. Pra saber o quanto dói uma saudade eles via de regra têm que passar por cirurgias complicadas nas próprias famílias, senão acham que família de paciente é tudo gente neurótica que tem prazer em atormentar médicos.

A Fá voltou para o quarto perto da meia-noite com dois drenos. Sou capaz de jurar que ela parecia um anjo deitada na maca e dormindo (apesar de eu nunca ter visto um anjo). Só posso afirmar que me surpreendeu o quanto ela estava, de fato, bonita. Linda.

Estávamos eu, minha mãe e o Alim no quarto esperando por ela. Depois de uma queda-de-braço que durou quase o dia todo, convenci minha mãe a fazer o combinado e voltar pra casa enquanto eu passaria a noite com a Fá. Em seis dias minha mãe teria que acompanhar o Alim ao hospital para a cirurgia dele e tanto eu quanto a Fá queríamos poupá-la. A sorte é que a Fá, com aquela voz de bêbada e a consciência meio grogue de quem ainda está sob efeito de anestesia, me chamou naquela hora: "Cadê a minha irmã? Ela vai ficar comigo, né?" Convenceu a mãe. Depois disse, no meio de algum delírio qualquer: "Eu vou pegar a minha bolsa e vou embora. Boa noite e boa sorte." E assim nos livramos de um tumor mamário.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Plástica

"Pra mim era como se ele estivesse perguntando se eu queria morrer de tiro, afogada ou enforcada. Não sei o que escolher."


Foi assim que a Fabíola saiu do consultório em sua primeira consulta com o cirurgião plástico que faria a reconstrução da sua mama logo depois da mastectomia. Dessa vez eu fui junto.


Passamos três horas nos consultórios dos dois médicos: primeiro o cirurgião plástico, depois o mastologista/oncologista. O dr. Márcio Costa, cirurgião plástico, explicou para a Fá quais as opções de cirurgia reconstrutora da mama e as vantagens e desvantagens de cada uma. As duas primeiras envolviam uma prótese de silicone, que tem de ser trocada a cada 10 anos em média. A terceira consistia em retirar tecido adiposo do abdome e fazer uma falsa mama com a gordura do próprio corpo da Fá. A desvantagem estava na recuperação mais lenta e numa cicatriz que ficaria de ponta a ponta do abdome. Mas a grande vantagem, segundo ela, era se livrar da barriga -- sonho que ela tinha praticamente desde tempos intra-uterinos. Assim mesmo ela não sabia o que escolher. Diante da ansiedade, a palavra de sabedoria veio da minha mãe: "Deixa que as coisas vão se decidir por si sós."


E assim foi. Entrando no consultório do mastologista descobrimos que o tumor era maligno, sim, com grau II de malignidade e de invasão. Havia pegado um pouco do músculo peitoral, que teria de ser retirado. Com isso a única opção de reconstrução que sobrava era a última, sem chance para o silicone. O reto-abdominal da Fá também teria que ser "transportado" para o lugar do peitoral e o abdome dela ficaria protegido por uma tela.


Também fomos avisados de que, após a cirurgia, a Fabíola teria que passar por uma quimioterapia pesada. É o que se faz com pacientes muito jovens por dois motivos: primeiro, para diminuir ao máximo a chance de recidiva. Segundo, porque o organismo jovem reage bem ao bombardeio da químio.


A notícia caiu muito mal para a Fá. Ela ficou péssima ao saber que teria que enfrentar uma químio que a faria perder os cabelos. Pra mim foi uma surpresa: eu, por minha vez, estava de luto pela mama perdida da Fá e lamentava a cicatriz que ela teria de carregar para o resto da vida. Mas pra ela o que pegou mais foi a notícia da queda dos cabelos. O baque durou até o dia seguinte. Ela ficou super murchinha. Se perguntassem a ela como ela estava conseguindo passar por aquilo tudo ela diria o que me disse ao sair do consultório: "Eu não estou passando, estou sendo passada!" Mesmo com todo o desânimo, porém, ela não reclamou. Nem se questionou. Tinha que passar (ou "ser passada") por aquilo e ponto final. Para alguma coisa na vida dela isso serviria e não cabia a ela perguntar por quê, mas fazer do limão uma limonada.

Confesso que nem eu mesma sabia o quanto minha irmã era forte e madura. Sabia até um certo ponto, mas não imaginava que o grau de maturidade espiritual dela fosse tão alto. Não sei se eu não teria me revoltado. Provavelmente teria, pra ser sincera.

No entanto nem tudo foram más notícias: as chances de cura eram bem altas. Os dois médicos eram fenomenais. Haveria também a chance de ela não passar pelo que comumente se chama "esvaziamento axilar".

Há pouco mais de uma década, toda pessoa que tinha câncer de mama tinha que tirar os linfonodos (que são responsáveis pela "limpeza" do corpo) da axila. Isso porque a axila é normalmente o primeiro local do corpo a sofrer com metástase e depois pode enviar as células cancerosas para outros lugares. Mas há algum tempo foi desenvolvido um teste para o chamado linfonodo sentinela, que é o que primeiro que manifesta a metástase. Se o teste da Fabíola desse negativo antes da mastectomia ela não precisaria se submeter ao esvaziamento axilar em 95% dos casos. Em apenas 5% a metástase se manifesta um pouco mais tarde, depois de uma análise mais aprofundada do material em laboratório. Aí o esvaziamento axilar é feito dias ou semanas depois.

No fim saímos do consultório com a cirurgia marcada e toda a documentação pronta para ser enviada ao convênio. E isso são cenas de um próximo post.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Humor é fundamental

Pra não ficar só nas coisas mais sentimentais, o que estava tragicômico eram as conversas telefônicas do Alim com a Fabíola no período pré-operatório: "Oi, tudo bem?" "Tudo bem, e você? Tem conseguido dormir à noite?" "Mais ou menos, e você? Tá com muita dor?" "Nem tanto. E como você está psicologicamente?" "Um pouco ansioso." "Como foi a sua biópsia? A minha doeu, e a sua?" E por aí vai. Trocavam figurinhas sobre biópsia, exame de sangue, exame do coração...

Na comemoração de aniversário dos dois (que pra completar fazem aniversário com 13 dias de diferença), a Fabíola perguntou, antes de cortar o bolo, logo depois do "Parabéns": "Adivinhem qual vai ser o desejo dos dois? É o mesmo pros dois aniversariantes!" Foi só risada. Aliás, acho que as risadas por aqui continuam mais numerosas que as lágrimas, mesmo neste período.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um momento bonito e representativo desta fase de espera que descrevi até agora foi um dia em que a Fabíola fez a manicure. Como faz quase toda semana há pelo menos três anos, a Elaine veio fazer a unha da Fá aqui em casa. É assim que ela trabalha. Antes de ela chegar a Fabíola me perguntou: "Será que conto pra ela?" Eu achava que tinha que contar, visto que era possível aquela ser a última manicure da Fá antes da cirurgia. Ela, então, resolveu falar com a Elaine quando a unha já estivesse terminada, pois achava que a Elaine ia ficar triste.

Acontece que, enquanto a Fá fazia a unha, recebemos um telefonema dos recém-casados Aline e Estevão, dos quais eu tinha sido madrinha de casamento duas semanas antes, dizendo que iam passar em casa pra fazer uma visita pra Fá. Vai que eles chegassem no meio da manicure e falassem alguma coisa... A Fá resolveu, então, com muito jeitinho, contar de sua situação para a Elaine. A Elaine foi reagindo bem e dando força pra Fá, até que não agüentou, baixou a cabeça e começou a chorar: "Desculpa Fá, é que eu tô muito triste!" No mesmo instante a Fá se levantou da cadeira e abraçou a Elaine, dizendo: "Não fica assim, vai dar tudo certo, você vai ver."

Eu e minha mãe derramamos umas lágrimas às escondidas. Naquele gesto estava uma amostra de tudo o que vivíamos naquele momento: o carinho dos amigos, o sentimento de unidade conosco, a extraordinária aceitação e confiança da Fabíola. Se fosse cena de filme ia ficar piegas. Mas quando faz parte da vida é outra história.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

"Quem encontrou um amigo encontrou um tesouro"

Amigo fiel é refúgio seguro: quem o encontrou encontrou um tesouro.
Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável.
Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão. (Eclesiástico 5, 14-16)

Das muitas passagens bíblicas que se tornaram clichês mas não são postas em prática pela maior parte do globo, essa é uma das minhas preferidas -- e também uma que se fez verdade na minha vida. Se existe alguma lição que reaprendo a cada dificuldade por que passo é esta: o mais essencial da vida é ter bons amigos. Dá pra viver sem namorado ou marido (embora eu não conceba mais a minha vida sem o Rô), mas sem amigos nem pensar. Eles é que têm sido nosso esteio neste período.

Há os que ligam todos os dias e os que ligam de vez em quando; os que visitam e os que mandam email. Há também os que não querem ligar muito nem visitar pra não atrapalhar. Há os que oram, os que mandam energias positivas e os que mandam uma guloseima. Cada um está presente do seu jeito e todos nos consolam, alegram e emocionam. Todos acharam um jeito de estar presentes: alguns se matando de chorar porque fizeram sua a nossa dor e outros que nos presenteiam com novos repertórios de piada pra tentar levantar o ânimo. Os membros do meu querido GPP S. Luís fizeram uma vigília de oração aqui em casa duas noites antes da cirurgia da Fabíola. Alguns moveram mundos e fundos pra arranjar remédios mais em conta. Não quero citar ninguém porque posso esquecer um nome essencial e, caso lembre de todo mundo, este post vai virar uma lista de agradecimentos de Oscar (bocejos...)

Enfim, são eles, presentes desde as suspeitas até agora, os instrumentos que Deus achou pra nos dar vida, e vida em abundância. Obrigada.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Estou sentindo uma tontura igual à que eu normalmente sinto quando viajo para o hemisfério norte. Senti isso em Manaus também. Sinto como se eu estivesse num barco que joga um pouco com as ondas. Em todo caso não posso contar isso pra ninguém na atual conjuntura. Se continuar assim até a semana que vem marco consulta com a otorrino.

terça-feira, 1 de abril de 2008

A maratona

Contar toda a maratona burocrática pela qual eu tive que passar a partir do dia em que a Fabíola voltou do consultório do oncologista ia preencher vários blogs com inúmeras chatices. Ia ser pior que ler Diário Oficial. Não vou fazer isso com vocês. :) Vou escolher o dia mais emblemático da maratona pra dar uma amostra daquilo pelo que a família de um paciente oncológico tem que passar -- nem que seja pra depois descobrir que o paciente, graças a Deus, não tem câncer.



O primeiro exame marcado foi a biópsia do nódulo. Foi fácil marcá-lo no laboratório de escolha da Fá, mas ela tinha que conseguir uma senha para a realização do exame com o convênio. A palavra "convênio", aliás, tem me dado urticária. Nesse caso específico ligamos para o convênio logo após a Fá ter chegado em casa, ou seja, numa véspera de feriado. Fui informada de que o departamento de senhas só funcionava de segunda a sexta, das 8h00 às 17h00, mas que como o dia seguinte era feriado eles não funcionariam. Ou seja, o exame marcado para o sábado teve de ser adiado para segunda-feira porque os pacientes que têm de fazer exames urgentes devem ter o cuidado de só ficar doentes em dias úteis até as 17h00. Remarquei o exame para segunda à tarde e expliquei a situação para a atendente do laboratório e ela perguntou: "A que horas abre o departamento de senhas, às 8h00? Então ligue pra eles na segunda-feira às 8h01." Ela com certeza sabia do que estava falando.

Foi o que fiz. Ligo de manhã para o laboratório, assim que acordei, para dizer que já havia mandado todo o material necessário e que aguardava a senha para realização do exame ainda naquele dia, pois o médico pretendia operar a paciente ainda naquele sábado. Dizem que ainda não haviam analisado o pedido, que era pra eu ligar mais tarde. Me apronto e vou fazer o almoço da Fá, pois ela precisava de alimentação especial naquele dia por conta do exame. Legumes e cebola já picados. Ligo de novo. Disseram que entrariam em contato comigo até meio-dia. Arroz cozinhando. Às 12h30 ligo de novo porque obviamente não me retornaram. Começo a engrossar, assim como o caldo dos legumes. Sem senha ainda. Mesa posta. O telefone tocou -- ainda bem! Era o laboratório em que ela tinha outro exame marcado para o dia seguinte dizendo que a máquina de ressonância magnética havia quebrado sem previsão de conserto. Desespero. Ligo para outros laboratórios, não cobrem aquele plano. A Fá chegou. Ligo de novo pro convênio, digo que tenho que sair em menos de uma hora pro laboratório, é caso de urgência, blá blá blá, pra me dizerem que para a realização daquele exame não era necessário ter senha. "Se a gente soubesse teria feito o exame no sábado e não teria remarcado pra hoje!" "Me desculpe, senhora." Como almoço frio. Vamos pro laboratório, porque a Fá precisa de um acompanhante. Levo o laptop pra trabalhar enquanto ela faz o exame.

Chegando ao laboratório pedem a senha. Eu sabia! Aí a briga passa para a atendente do laboratório com o povo do convênio. Já não é mais comigo. A atendente é guerreira, liga umas dez vezes. Enquanto isso ligo pro doutor Arnaldo pra explicar a situação da máquina quebrada pra fazer o outro exame. "Ele não pode atender." "Por favor pede pra ele me ligar com urgência." Abro o laptop e começo a digitar uma carta de reclamação para o convênio. O exame atrasa, óbvio, porque a bendita senha demora a sair. Fico na sala de espera digitando a carta. A Fá sai com bolsa de gelo no seio porque o exame foi dolorido, super dolorido. Ligo para a chefe dela pra avisar que ela não pode trabalhar por dois dias: determinação dos médicos por causa do exame.

Assim que chego em casa o dr. Arnaldo retorna e me pede pra ver em que laboratórios o convênio cobre o exame de ressonância. Ligo pro convênio. Ligo pro dr. Arnaldo com a lista. Hora do jantar. Ele recomenda os laboratórios tal e tal. Um deles não tem horário para aquela semana. Ligo pra outro e mais outro. Consigo um para a quarta-feira. Vou preparar um ovo pra Fá e esquentar o arroz. Perdi a missa. Janto. Vou trabalhar. Vou para a cama às 2h00. Acho que já estava dormindo em pé antes disso...

quinta-feira, 27 de março de 2008

Consulta

Acordei renovada na quarta-feira. Nada havia mudado, a não ser uma boa noite de sono. Ou melhor: também havia muitas respostas de amigos pro meu email pedindo orações. Foram muito, muito valiosas e me ajudaram a me reerguer.

A Fabíola estava que era a própria imagem da serenidade. Levava a vida normal e estava cheia de confiança. Não precisou de remédio pra dormir em dia nenhum, ao contrário da irmã.

Na quinta-feira, dia 24 de janeiro, véspera do aniversário de São Paulo, ela e minha mãe foram ao consultório do dr. Arnaldo Urbano Ruiz, mastologista e oncologista. Enquanto isso eu fiquei por aqui resolvendo coisas práticas -- como ir ao banco pra Fá -- e rezando como podia. Na maior parte do tempo isso se resumia a repetir minha palavra de oração (ou mantra) continuamente, a forma de oração mais simples que existe. Não estava rolando fazer oração mental...

A consulta atrasou bastante e elas chegaram em casa tarde. Eu estava agoniada pra ver a cara das duas na hora em que chegassem. Pra surpresa e alívio da minha parte, chegaram conversando. Nenhum rosto inchado, olho vermelho ou voz grave. Mas os prognósticos não eram bons.

Acho que muito da tranqüilidade das duas se deveu ao excelente médico. Quando elas entraram no consultório dele ele não quis olhar os exames que a Fá tinha em mãos pra não ser influenciado. Em primeiro lugar conversou com a Fabíola e disse a ela que não a enxergava como uma mama doente, mas como um ser humano.

Depois da conversa ele foi fazer o exame clínico. Só de apalpar a mama ele adivinhou o tamanho do nódulo, isso sem ter olhado um único resultado de exame. Chamou a atenção dela e da minha mãe também para a pele que repuxava, que eu havia notado semanas antes.

O resumo da ópera é que a Fabíola ia ter que operar, fosse o nódulo benigno ou maligno, por causa do tamanho do dito cujo. Além do tamanho tinha a localização: bem na aréola. Por isso o afundamento do mamilo. De todas as localizações possíveis na mama essa era a pior. O danado escolheu a dedo.

O dr. Arnaldo foi muito humano, mas direto. Advertiu que a possibilidade de o nódulo ser maligno era muito mais alta que de ser benigno. Com muito jeito ele também disse que, caso essa suspeita se confirmasse, não teria como retirar apenas um quadrante da mama por causa do tamanho pequeno da mama da Fá. Ela teria mesmo que fazer uma mastectomia radical. No entanto a reconstrução ocorreria logo depois. Havia um cirurgião plástico com quem ele trabalhava no mesmo consultório. Além disso ele já teria engatilhados o profissional que cuidaria da químio e um psicólogo especializado em pacientes oncológicos, caso fosse necessário. Um verdadeiro trabalho em equipe.

As duas voltaram pra casa munidas de 7 pedidos de exames pré-operatórios. Começaria, então, minha maratona.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Dias de espera

Está coberto de razão quem disse que pior que uma desgraça em si é a expectativa da desgraça. Foi o que aconteceu comigo depois daquele dia 21 fatídico. A Fá se controlou e levantou no horário de sempre (6h10) pra ir trabalhar. Estava decidida a não comentar nada no trabalho até ter certeza de alguma coisa.

Já eu... Antes de dormir, na segunda-feira, sentia como se um trator tivesse passado por cima de mim. Perdi as contas de quantos altos e baixos tive na terça-feira, mas pensava que, contanto que os baixos acontecessem longe da Fá e dos meus pais estava bom. Ia dar pra agüentar. Mas foi difícil. Havia momentos de agonia silenciosa em que o dia-a-dia parecia perder o sentido. Alternei momentos de confiança com outros de quase-desespero, tristeza e uma certa revolta com Deus. Não pelo câncer em si, mas eu perguntava a Ele por quê ela e não eu. Dentro de mim eu dizia: "Senhor, você não está agindo de modo lógico! Eu sou um ano mais velha e tenho mais peito. Por que, então, isso foi acontecer com a Fabíola?" As coisas que pensamos de Deus são quase impublicáveis de tão cômicas e tão íntimas. Revelam aquilo que não queremos ver em nós mesmos.

No final da tarde fui à missa às 17h00 e me forcei a ir à aula de natação. Entre uma e outra mandei um torpedo pro Alex pedindo que orasse por mim, pois eu me sentia prostrada, sem energia pra nada. Ele me respondeu perguntando se eu queria que ele passasse em casa. Na verdade eu não queria. Não queria ver ninguém, falar com ninguém. Estava exausta, queria dormir por dias se fosse possível. Mas o Alex apareceu em casa depois da aula de natação. Minha mãe já tinha vindo de Atibaia pra cá pra dar uma força pra Fá.

Sábio Alex, como sempre. Depois de tudo o que eu disse pra ele sobre como me sentia ele se lembrou de me apontar o óbvio: "É, Cris, tá muito recente ainda. Você não teve tempo de organizar essas coisas dentro de você e é normal que seja assim." É verdade: fazia apenas 24 horas que eu sabia da notícia.

Assim mesmo acho que esse dia foi o auge do meu desespero. Comecei a ler uma reportagem sobre câncer da revista Época que havia ajudado muito o Alim. Lá falavam de uma quimioterapia muito promissora para pacientes de câncer de mama... com nódulo de até 1 centímetro. O da Fabíola tinha dois. Aquilo me parecia um Corcovado, não um nódulo. Liguei pro Rodrigo pra perguntar quanto media o nódulo que tinha sido retirado da mãe dele. Ele disse que era um centímetro e pouco. "E o da Fabíola, que tamanho tem?" ele perguntou. Não tive coragem de falar. Enunciar as palavras "dois centímetros" parecia sentenciá-la à morte. Eu só chorava e pedia oração a ele. Ele passou o telefone para a mãe. "Não fica assim, fia," disse ela. "Não sofre antes do tempo!" Se qualquer outra pessoa tivesse me dito isso acho que não teria surtido efeito. Mas ela... Depois do que ela tinha passado essas palavras soavam vindas "de quem tem autoridade", pra citar os Evangelhos.

Só consegui dormir graças a um comprimido. Já o Alim passou a ter pesadelos diários a partir desse dia. Enquanto o câncer estava com ele, tudo bem. Na Fá já era motivo de sofrimento pra ele. Eis alguém que entendeu bem minha vontade de sofrer no lugar dela.

terça-feira, 25 de março de 2008

Diagnósticos - parte II

Voltei na semana passada de uma viagem de trabalho de 10 dias, três dos quais passados no meio da floresta amazônica. Apesar de não querer estar longe de casa neste período a ausência me fez bem. Por pouco tempo pareceu que as histórias deste blog ficaram a uma distância de várias eras. Na verdade tanta coisa aconteceu nos últimos dois meses que, mesmo que eu ficasse em SP, já dava para ter a impressão de que algumas eras se passaram. No entanto é fácil lembrar do último 21 de janeiro, tal o impacto que teve na vida da família.

Foi uma segunda-feira, exatamente uma semana depois de a Fá ter completado 35 anos. O meu celular tocou pouco antes das 18h00 e eu não consegui atender a tempo. Liguei pra ela de volta mas ela não atendeu. Deliguei o telefone para participar da missa. Lá, por graça de Deus, encontrei meu "eu" masculino: meu amigo-irmão Alex. Ele veio caminhando comigo da igreja até minha casa, enquanto eu via no celular que havia várias ligações não atendidas da Fá. Liguei pra ela de volta. Não atendeu. Até que ela ligou com a voz um pouco turvada: "Cris, estou saindo do consultório do dr. Alexandre. É, parece que o nódulo não é coisa simples." Não vi como ficou minha cara nesse momento, mas o Alex disse que pela primeira vez desde que nos conhecemos ele me viu realmente preocupada.

A Fá chegou em casa com olhos vermelhos. O próprio dr. Alexandre havia levado um susto ao ver o resultado da mamografia. O nódulo havia dobrado de tamanho em três meses.

O dr. Alexandre é do tipo que pra morrer de repente leva três meses. É de uma calma invejável. Nunca nos alarmou com nada. Dessa vez, apesar dos pesares, não foi diferente, mas as notícias em si eram alarmantes. Segundo a Fá, a ficha dela caiu logo que ele viu o resultado da mamografia e começou a fala dele com a seguinte frase: "Fabíola, eu vou ser sincero com você." Já dava pra sentir o que estava por vir. Ele não havia gostado do resultado da mamografia. O comportamento do nódulo estava muito suspeito. A Fá perdeu o chão. Ele foi descrevendo o histórico dos exames dela, mas ela já não ouvia direito. Começou a chorar. No total eles ficaram quase uma hora no consultório e ele a encaminhou para um mastologista e oncologista da confiança dele. Mais tarde ele me disse que é complicado recomendar colegas por causa da expectativa que isso gera, mas que o especialista que ele havia recomendado era o mastologista da família dele. Diz ele que é suspeito para falar do colega e que não tem o menor problema em dizer que, nessa área em particular, o colega é melhor do que ele. (Semanas depois eu descobri que o próprio dr. Alexandre foi considerado um dos melhores ginecologistas do Brasil por uma pesquisa feita entre médicos. E ele atende convênio! É um fofo. Quem diz que humildade não leva a nada?)

A Fá saiu do consultório soluçando de tanto chorar e tentou me ligar várias vezes. Como caía na caixa postal ela resolveu ligar para o namorado, o Fernando. Esta figura é um caso à parte. O Fê cuida sozinho da mãe que tem Alzheimer e leva uma vida pra lá de estressante, mas é das pessoas mais alegres e bem-humoradas que eu conheço. Não é difícil imaginar por quê a Fabíola não queria deixá-lo preocupado, mas ela tinha que falar com alguém.

Como se não bastasse ser bem-humorado o Fernando também é muito sensato. Ele acalmou a Fabíola e disse que, antes de se preocupar, ela devia esperar pela consulta com o mastologista e fazer mais exames para ter o diagnóstico correto.

Já eu, apesar de estar razoavelmente serena, sentia que os exames só confirmariam a minha suspeita: nódulo maligno. Subi ao meu apartamento rezando uma Ave-Maria e logo depois cantando "Nada Te Perturbe", canto de Taizé baseado em uma oração de Teresa de Ávila, tentando me controlar. Minha casa não parecia minha, o tempo estava meio congelado. E por falar em Ávila, logo encontrei meu pai e tentei cumprimentá-lo de um jeito normal.

A Fá chegou em casa com os olhos vermelhos. Nós duas nos trancamos no quarto e ela foi me contando o que havia acontecido. Apesar do nervoso ela estava em pleno controle de si mesma e disse estar pronta para aceitar o que viesse sem se perguntar por quê.

E como é que faríamos com os pais? Não ia ter jeito, tínhamos que contar pra eles. Não somos boas mentirosas. Melhor que eles soubessem da suspeita e depois ficassem aliviados se fosse o caso. Chamamos meu pai para conversar. Ele ficou meio paralisado, mas não surtou. O mesmo aconteceu no telefonema para minha mãe.

A noite foi difícil pra mim. A Fá, porém, dormiu bem. Eu só consegui dormir depois de ter entrado nos e-grupos dos amigos da Igreja pra pedir orações. Sabia que só isso ia me sustentar dali pra frente.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Suspeitas

A tempestade vinha se formando de um jeito meio confuso desde agosto do ano passado. Um belo dia, ao sair do banho no meio de uma de nossas muitas conversas de banheiro, a Fabíola me perguntou, apontando para o seio direito: "Você não acha que este mamilo está um pouco afundado?" "Você está vendo coisa," respondi. Naquela altura do campeonato só mesmo ela enxergava aquilo. Ninguém de fora percebia, nem mesmo eu que a conheço tão bem. E sabendo quanto ela é encanada eu me limitei a tirar sarro.

Já em setembro vi um pequeno afundamento, sim. Ela havia estado no consultório do nosso ginecologista em março e só deveria voltar um ano depois, mas minha irmã não é de deixar essas coisas pra lá. Voltou ao ginecologista por precaução.

Aparentemente aquele afundamento ligeiro, muito ligeiro, não era motivo de preocupação. A Fá é saudável, não fuma, se cuida, não tem casos de câncer de mama na família e tinha só 34 anos. Nada pra se preocupar, mas o nosso ginecologista também não deixa as coisas pra lá. Pediu outra ultrassonografia de mamas além daquela de março.

A ultrassonografia mostrou um nódulo pequeno na mama direita. "Eu não gosto de nódulo" -- ainda lembro da Fabíola reclamando com aquele ar brincalhão de bebê carente que ela faz quando quer mexer comigo. Eu também não, mas tenho uns 5 ou 6 espalhados pelas duas mamas, disse. Já são de estimação. Estão lá e não atrapalham ninguém. Um deles apareceu há alguns anos e sumiu sozinho um tempo depois. Tento monitorá-los uma vez por ano -- quando não enrolo e acabo deixando passar a época certa da consulta.

Na primeira vez que apareceu um nódulo na minha mama eu me assustei, mas depois descobri que é normal as mulheres terem esses nódulos e conviverem com eles. Muitos deles são apenas formações gordurosas que desaparecem sozinhas. Por isso o ginecologista receitou vitamina E para a Fá: provavelmente ajudaria a dissolver o nódulo.

Acontece que o mamilo da Fabíola não parava de afundar. "O bico tá afundado," ela dizia ao sair do banho. "O bico tá cada vez mais afundado," repetia naquele tom brincalhão. Até que em dezembro, com "o bico afundado" de vez, concluiu que tinha de voltar ao médico. Dessa vez, além da ultrassonografia, ele pediu uma mamografia.

As conversas de banheiro iam ficando mais perigosas. Aquele momento do dia em que a Fá chegava tarde da escola e eu ia me preparar pra dormir era muitas vezes o único que tínhamos para um papo de irmãs. Era a hora das novidades, brincadeiras e reclamações. Mas cada vez que a Fabíola levantava o braço direito eu ia notando que a pele do seio repuxava. Comecei a ficar preocupada. Minha pouca cultura no assunto dizia que pele de mama repuxada é mau sinal. "Você já foi fazer os exames?" eu perguntava. "Vou fazer quando entrar em férias," ela respondia. Eu sabia que ela, ao contrário da irmã, não ia deixar o tempo passar pra fazer o exame, mas começava a ter um estranho sentido de urgência. Dizem que "pouco conhecimento é algo perigoso". Quem sabe meu pouco conhecimento de câncer de mama estivesse me assustando um pouco além da conta, mas o fato é que eu comecei a ficar apreensiva.

Eu não queria assustar a minha irmã. A Fabíola é do tipo que quando vê uma reportagem sobre câncer de próstata é capaz de ficar com medo de também ter. Mas eu mesma estava um pouco apavorada. Simplesmente não conseguia imaginar minha vida sem a minha irmã. A morte dos que a gente ama é sempre difícil -- nada mais clichê. Mas pra mim é menos difícil imaginar minha vida sem um dos meus pais. A hora deles está naturalmente mais próxima. Os dois passaram de 65. Mas a Fá... simplesmente não era a hora dela. Muito menos era a hora de eu, muito egoisticamente, viver sem ela.

Quando a Fá nasceu eu tinha 1 ano e 3 meses de idade. Deixei a parentada toda comovida porque, ao vê-la na maternidade no colo da minha mãe, disse: "nenê querido!" A coisa mais fofinha! Obviamente a fofura só durou até ela chegar em casa. Dali em diante parece que foi uma ciumeira só. E de lá pra cá meus pais perderam a conta das vezes em que ouviram a Fabíola chorar dizendo "a Cristiana me bateu!" De fato sempre tivemos a relação às vezes meio alérgica de unha e carne. Os descolamentos dóem, a cutícula machuca quando maltratada, as unhas às vezes crescem demais e às vezes ficam muito curtas. Mas na maior parte do tempo a relação, além de próxima, é harmoniosa. Perder a Fá seria mais que perder um pedaço de mim mesma. Por algum motivo inexplicável depois de adulta, passados os arranca-rabos da adolescência e as complicações de se dividir um quarto, ela voltou a ser a minha bebê.

Não dava pra falar dos meus medos pra ninguém: só para o Rô. Foi só com meu namorado que desabafei. Uma das grandes bênçãos da minha vida é ter um namorado equilibrado. Além de tudo havíamos passado juntos naquele semestre pelo segundo estágio do câncer de mama da mãe dele. Ele só tinha palavras sensatas e consoladoras pra me dizer. Mas eu não sosseguei enquanto a Fá não fez os benditos exames. E acho que aquele foi um dos únicos momentos de "sossego" que tive nos últimos três meses.

sábado, 8 de março de 2008

Diagnósticos - parte I

Minha vida de "canceriana" começou em dezembro de 2007, com 36 aninhos razoavelmente bem aproveitados da minha vinda ao planeta. Trinta e seis, aliás, não é uma idade nem um pouco emblemática pra meio que nascer de novo, que é o processo de parto em que me encontro. Ainda bem. Já pensou que coisa mais clichê dizer que teve que começar a conviver com o câncer aos 35 ou 40? Nada de cincos ou números redondos. Nada de 18 ou 21. Acredito que as coisas acontecem quando têm que acontecer e há muita vida entre os cincos e as dezenas.

Sem mais nem menos o Alim, meu padrasto, foi fazer um exame de próstata de rotina, desses dos quais os amigos machos tiram sarro, e descobriu que estava com um câncer em estágio inicial. Minha mãe havia confundido a data da consulta para buscar o resultado do exame e não estava com ele no consultório. Ligou para o celular dele e ele atendeu com voz cavernosa: o aumento de PSA era mesmo um mau sinal de coisa ruim. Fechado como ele é, não posso imaginar muito bem como é que ficou a confusão emocional na cabeça e no coração dele. Sei que o danado, ao invés de voltar direto pra casa, resolveu "fazer umas coisas" antes de voltar ao trabalho para só depois ir pra casa. Enquanto resolvia esses problemas não atendeu o celular, para desespero da minha mãe. Por que será que certos homens teimam em reforçar o estereótipo de bicho isolado que, ao ter um problema, cuida dele sozinho pra não dar trabalho e acaba alijando do processo os pobres (especialmente as pobres) mortais que o cercam?

Sei que a primeira noite do Alim não foi boa. Faltavam 10 dias para o natal e ele "não queria estragar o momento" da família, por isso pediu à minha mãe que não comentasse seu câncer com ninguém. Sorte minha que tenho uma mãe desobediente -- muito desobediente -- desde a juventude. Ela contou pra mim e pra Fabíola. Senti que tudo se resolveria muito bem pra ele e não me preocupei. A Fá, intuitiva como sempre, disse que tinha certeza de que isso não seria nada e também não se abalou.

O abalo mesmo estava por vir, e viria uns 40 dias depois.