terça-feira, 3 de junho de 2008

De volta: o apostolado

Este pobre blog abandonado! Se eu tinha algum leitor, acho que desistiu. Mas tenho esperança de que um dia estes rabiscos virtuais ainda sirvam para algum desavisado (como todo mundo, por sinal) que um dia descobre ter um caso de câncer na família. Infelizmente parece que a doença não vai arredar pé e vai continuar assombrando este século XXI, pelo menos em sua primeira metade. Então, mais de um mês após o último post, depois de um computador no conserto e outra epopéias, voltemos a fevereiro de 2008 e ao período de internação da Fabíola, que a esta altura parece estar a séculos de distância.

Cinco dias depois da internação consegui passar minha primeira noite em casa. Foi a única noite em que deixei a minha mãe dormir com ela. Sabíamos que já estava quase no dia da alta, mesmo. Em todo caso, como eu sabia que voltaria ao hospital (pelo menos para a alta da Fabíola no dia seguinte), resolvi estender o apostolado que comecei no hospital. Pois é: o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, mais precisamente o quarto da Fabíola, foi o templo da minha primeira missão como Ministra Extraordinária da Sagrada Comunhão.

Antes de ir adiante com a história, a expressão de quatro palavras logo acima exige uma explicação a católicos e não-católicos. Os católicos chamam essa função de "ministro da Eucaristia" e os não-católicos não tem idéia do que seja. O ministro é uma pessoa leiga (ou seja, que não foi ordenada, como o padre, e por isso se chama "extraordinário") que ajuda o padre a distribuir a comunhão. Normalmente eu ajudava nesta distribuição durante a missa da qual participo, mas a verdadeira função do ministro é levar a comunhão para fora da igreja, às pessoas que não podem sair de onde estão para participar da missa. Exatamente o que estava acontecendo com a Fabíola e com a minha mãe. Fiz isso todos os dias em que a Fá esteve internada, com exceção de sábado. Uma lembrança particularmente querida deste meu apostolado foi a terça-feira em que a Fá mudou totalmente de expressão depois de receber a comunhão. Todo mundo que estava no quarto notou. Acho que só aquilo já valeria os dois anos de "ministério" que recebi de responsabilidade da Igreja. A comunhão foi verdadeiro remédio para ela.

Além dela fiz meu apostolado com a dona Maria de Lourdes Ribeiro. Eu estava saindo do hospital para dormir em casa quando, passando pelo corredor, vi um quarto com a porta aberta e uma imagem de S. Judas sobe a escrivaninha. Entrei e vi uma senhora no leito junto com dois homens mais jovens (que eu logo vi serem filhos dela). Perguntei se ela era católica e se gostaria de receber a Comunhão no dia seguinte. Como ela não podia deglutir nada, nem água, fiquei de levar para ela uma água benta vinda da fonte de Lourdes, na França, e fazer uma oração no quarto dela. Com a lembrança que o nome dela evocava, a providência de Deus faria chegar aquela água do Hemisfério Norte diretamente para o conforto da dona Maria de Lourdes . Aliás, mais apropriado seria dizer que a providência de Deus fez chegar o conforto a todos nós, principalmente eu mesma. Mas isso é assunto pra outro post. Agora, como naquela longínqua quarta-feira, vou dormir o sono dos justos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Piaf

Já que mencionei o apelido da Dona Nhanhã que foi dado à minha irmã enquanto ela tinha que andar curvada, devo confessar que dei a ela outro apelido maldoso depois de ver o filme Piaf -- Um Hino ao Amor: Edith. Só que a pobre da Edith Piaf parece que andou curvada a vida toda, enquanto minha irmã já está com a postura legal. A Piaf, essa sim, comeu o pão que o diabo amassou. Perto do que ela sofreu a situação da Fabíola fica até amenizada. Sempre tem alguém pior do que a gente, mesmo.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

... e dias

Os oito dias em que a Fá ficou no hospital também foram repletos de emoções. A começar pelas visitas. No dia seguinte à cirurgia, um domingo, houve aquilo que meu amigo Edu chamou de "o beija-mão da Fabíola". Havia um verdadeiro desfile de visitas. Houve momentos em que havia mais de uma dezena de pessoas no apartamento da pobre. Havia flores de todas as cores, cheiros e tamanhos -- assim como os chocolates, que a Fá logicamente não conseguia comer. As visitas acabaram se alimentando umas às outras (e também aos acompanhantes, lógico). Houve também frutas, pães e sucos. Com todas aquelas iguarias, tinha horas que eu comia só mesmo pra não deixar estragar. Em excesso, mesmo as iguarias ficam sem sabor em determinados momentos.

Fica uma dica para todos os leitores que vão visitar pacientes em hospitais e maternidades: por favor, façam uma visita curta. Quinze minutos é o ideal. E não estranhem se a pessoa estiver completamente baqueada, sem vontade de conversar. Em geral nem é legal conversar muito porque a pessoa deglute ar e isso pode provocar dores na barriga. Só que a minha doce irmã não sabe fingir que está dormindo nem dar respostas monossilábicas. Houve momentos em que a expressão dela denunciava o cansaço, mas em outros a boa educação que meus pais lhe deram não denunciaram nada. E algumas visitas iam ficando por uma hora ou mais, puxando conversa... E minha tia Zezé ia dando indiretas (que não funcionavam)... Em geral acho que não é o momento, a não ser que o paciente reclame de tédio e insista para a visita ficar depois dos tais quinze minutos. Via de regra a pessoa está cansada, desconfortável, com dor, com o corpo e as emoções revirados e se sentindo feia. Houve momentos até, depois que saíam do quarto as pessoas da família, com quem ela tinha toda a liberdade e podia fechar a cara, em que ela dizia: "Graças a Deus! Enfim sós."

O primeiro banho da Fabíola foi inesquecível. Em momento nenhum naquele hospital ela gritou ou chorou de dor, mas eu via ela espremer os lábios e suar. A auxiliar de enfermagem a revirou mais do que devia. Ela deve ter visto estrelas, coitada. Outra dica pros acompanhantes de pessoas que fizeram uma TRAM (cirurgia reconstrutora da mama que usa gordura e músculo abdominais): só deixem os auxiliares de enfermagem passarem um paninho (mais nada) no corpo do paciente nas primeiras 24 horas após a cirurgia. Ou então nem deixem dar banho.

Dois dias após a cirurgia ela devia ficar sentada pela primeira vez por alguns minutos e depois dar uns passinhos. O mal-estar era gigantesco a cada vez que ela se sentava na cama. Não conseguiu andar, mas o médico deu uma bronca: se ela não desse uns passinhos mesmo morrendo de dor e mal-estar naquele dia ia ter que fazer fisioterapia pra recuperar a qualidade da respiração. Louco, não? Graças à ajuda e segurança de uma auxiliar de enfermagem fofíssima chamada Florence a Fabíola não só conseguiu dar sua meia dúzia de passos, como se sentiu melhor depois de se sentar na poltrona do quarto. É claro, ajudou o fato de que o Alim, ao vê-la curvada, apoiada no suporte de soro, de camisola florida, meia elástica, pantufa e drenos pendurados no suporte, exclamou: "Dona Odete!" Foi o primeiro nome que veio à cabeça dele que soaria familiar num asilo. Mas meu pai é que deu a versão definitiva do nome idoso: dona Nhanhã.

O telefone também foi um caso à parte. Não parava de tocar. O primeiro telefonema, via de regra, me acordava antes das 8 da manhã depois de uma noite pra lá de conturbada. Minha voz cavernosa não chegou a intimidar os interlocutores matutinos. Não havia um almoço, jantar ou lanche que também não fosse interrompido. Contei as mesmas histórias várias vezes. Mas gostei muito de ver o carinho e o cuidado das pessoas. Antes carinho demais que de menos.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Noites...

Será que quero mesmo ter filhos?

Comecei a pensar nisso a partir da primeira noite pós-cirugia da Fabíola. De lá pra cá tem sido uma sucessão de noites mal-dormidas que parece infindável. E isso porque a Fá acorda à noite e precisa de cuidados rápidos. Imagine um ser berrando no meio da madrugada, a cada 2 horas em média querendo mamar no meu peito. Será que ainda tenho pique pra isso nesta altura da vida? Meu amigo Edu Cruz diz que sim, mas sinceramente... Tô brincando, lógico. :)

As noites no hospital foram as piores. Na primeira noite a pobre da Fá não se agüentava de dor... no calcanhar! Quem diria? Um músculo abdominal despregado e "dobrado", um peitoral cortado e uma mama a menos e a menina tinha dor no calcanhar. Segundo os médicos foi porque ela ficou com os pés imóveis numa mesma posição por muito tempo. O fato é que a dor era tanta que ela me pediu pra fazer massagem no meio da noite pra conseguir dormir. Depois tem os enfermeiros que entram e saem, verificam a pressão e a temperatura, dão remédios, perguntam como ela está. Três dias depois tiraram a sonda. Aí foi a maratona da comadre. Não bastasse esse castigo que é ter de usar uma comadre, a medicação intra-venosa com soro fazia a Fabíola produzir um xixi "tele-sena": de hora em hora. A quarta-feira à noite, única noite que minha mãe passou com ela (porque insistiu demais) foi a pior: um xixi a cada meia hora. Cronometrado. O que demorou mais foi 40 minutos depois do anterior.

De volta pra casa a saga continua. Até hoje, mais de dois meses depois da alta, ela ainda não pode deitar nem se levantar da cama sozinha por ordens médicas. Tem noites em que dorme direto, mas tem outras em que ela precisa fazer o que ninguém pode fazer por ela -- mas necessita de uma mãozinha. A comadre ainda está em uso. Pensamos até em personalizá-la com uma Hello Kitty ou uma Betty Boop pra ficar com a cara da dona, mas tenho a ligeira suspeita de que as fábricas de comadres não fazem isso...

Muitas outras noites (inclusive aquelas logo depois da aplicação da quimioterapia) têm mais um agravante: remédios que têm de ser tomados às 2, 3 ou 4 da manhã. Ou seja: se a Fá nasceu de novo com sua vitória sobre o câncer, a fase de recém-nascida vem com todos os "brindes" que normalmente envolvem os primeiros meses de vida. Sabemos que não é fácil. Mas que vale a pena, vale!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Cirurgia - parte I

Este blog está ficando muito atrasado. Já faz dois meses que o Alim e a Fabíola passaram por suas cirurgias, e aqui estou eu tentando lembrar as emoções desses dias. Vou ter que resumir pra poder chegar logo ao frescor das experiências atuais.

O que posso dizer é que quando a Fabíola foi ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz para a mastectomia, que aconteceu no dia 09 de fevereiro, parecia que ela ia pra uma maternidade. Lá se foi toda a família Buscapé com ela, além do Fernando (namorado dela) e da nossa amiga Lilian, que deu uma carona pra mim e pro meu pai. É claro que houve um pequeno stress relacionado ao convênio antes da internação, mas se não houvesse o convênio não teria cumprido bem o seu papel de encher o saco dos associados. O bom é que, a partir de um dado momento, a briga ficou a cargo do RH da empresa onde a Fá trabalha. Desse abacaxi eu me livrei por um bom tempo.

A Fá chegou ao hospital cercada de carinho, flores e presentes. Nem sei se ela tinha consciência de que era tão amada pela família e pelos amigos -- e que os médicos eram tão fãs dela! Nosso querido dr. Alexandre disse que dava gosto tratar dela, pois era uma pessoa muito "pra cima".

Enquanto minha pobre mãe ficava no apartamento dela no hospital, os outros fomos "distrair" meu pai com um almoço no Bixiga. Na idade dele (77 anos) melhor não se envolver muito. A dupla cirurgia terminou por volta das 22h30. Fomos muito bem tratados no hospital pelo corpo de enfermagem e todos os médicos passaram no apartamento depois de suas respectivas cirurgias pra dizer como tinha sido. Se os médicos em geral soubessem o quanto eles fazem bem a uma família apenas com esse gesto jamais deixariam de fazê-lo. Pena que nossos queridos são exceções. Pra saber o quanto dói uma saudade eles via de regra têm que passar por cirurgias complicadas nas próprias famílias, senão acham que família de paciente é tudo gente neurótica que tem prazer em atormentar médicos.

A Fá voltou para o quarto perto da meia-noite com dois drenos. Sou capaz de jurar que ela parecia um anjo deitada na maca e dormindo (apesar de eu nunca ter visto um anjo). Só posso afirmar que me surpreendeu o quanto ela estava, de fato, bonita. Linda.

Estávamos eu, minha mãe e o Alim no quarto esperando por ela. Depois de uma queda-de-braço que durou quase o dia todo, convenci minha mãe a fazer o combinado e voltar pra casa enquanto eu passaria a noite com a Fá. Em seis dias minha mãe teria que acompanhar o Alim ao hospital para a cirurgia dele e tanto eu quanto a Fá queríamos poupá-la. A sorte é que a Fá, com aquela voz de bêbada e a consciência meio grogue de quem ainda está sob efeito de anestesia, me chamou naquela hora: "Cadê a minha irmã? Ela vai ficar comigo, né?" Convenceu a mãe. Depois disse, no meio de algum delírio qualquer: "Eu vou pegar a minha bolsa e vou embora. Boa noite e boa sorte." E assim nos livramos de um tumor mamário.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Plástica

"Pra mim era como se ele estivesse perguntando se eu queria morrer de tiro, afogada ou enforcada. Não sei o que escolher."


Foi assim que a Fabíola saiu do consultório em sua primeira consulta com o cirurgião plástico que faria a reconstrução da sua mama logo depois da mastectomia. Dessa vez eu fui junto.


Passamos três horas nos consultórios dos dois médicos: primeiro o cirurgião plástico, depois o mastologista/oncologista. O dr. Márcio Costa, cirurgião plástico, explicou para a Fá quais as opções de cirurgia reconstrutora da mama e as vantagens e desvantagens de cada uma. As duas primeiras envolviam uma prótese de silicone, que tem de ser trocada a cada 10 anos em média. A terceira consistia em retirar tecido adiposo do abdome e fazer uma falsa mama com a gordura do próprio corpo da Fá. A desvantagem estava na recuperação mais lenta e numa cicatriz que ficaria de ponta a ponta do abdome. Mas a grande vantagem, segundo ela, era se livrar da barriga -- sonho que ela tinha praticamente desde tempos intra-uterinos. Assim mesmo ela não sabia o que escolher. Diante da ansiedade, a palavra de sabedoria veio da minha mãe: "Deixa que as coisas vão se decidir por si sós."


E assim foi. Entrando no consultório do mastologista descobrimos que o tumor era maligno, sim, com grau II de malignidade e de invasão. Havia pegado um pouco do músculo peitoral, que teria de ser retirado. Com isso a única opção de reconstrução que sobrava era a última, sem chance para o silicone. O reto-abdominal da Fá também teria que ser "transportado" para o lugar do peitoral e o abdome dela ficaria protegido por uma tela.


Também fomos avisados de que, após a cirurgia, a Fabíola teria que passar por uma quimioterapia pesada. É o que se faz com pacientes muito jovens por dois motivos: primeiro, para diminuir ao máximo a chance de recidiva. Segundo, porque o organismo jovem reage bem ao bombardeio da químio.


A notícia caiu muito mal para a Fá. Ela ficou péssima ao saber que teria que enfrentar uma químio que a faria perder os cabelos. Pra mim foi uma surpresa: eu, por minha vez, estava de luto pela mama perdida da Fá e lamentava a cicatriz que ela teria de carregar para o resto da vida. Mas pra ela o que pegou mais foi a notícia da queda dos cabelos. O baque durou até o dia seguinte. Ela ficou super murchinha. Se perguntassem a ela como ela estava conseguindo passar por aquilo tudo ela diria o que me disse ao sair do consultório: "Eu não estou passando, estou sendo passada!" Mesmo com todo o desânimo, porém, ela não reclamou. Nem se questionou. Tinha que passar (ou "ser passada") por aquilo e ponto final. Para alguma coisa na vida dela isso serviria e não cabia a ela perguntar por quê, mas fazer do limão uma limonada.

Confesso que nem eu mesma sabia o quanto minha irmã era forte e madura. Sabia até um certo ponto, mas não imaginava que o grau de maturidade espiritual dela fosse tão alto. Não sei se eu não teria me revoltado. Provavelmente teria, pra ser sincera.

No entanto nem tudo foram más notícias: as chances de cura eram bem altas. Os dois médicos eram fenomenais. Haveria também a chance de ela não passar pelo que comumente se chama "esvaziamento axilar".

Há pouco mais de uma década, toda pessoa que tinha câncer de mama tinha que tirar os linfonodos (que são responsáveis pela "limpeza" do corpo) da axila. Isso porque a axila é normalmente o primeiro local do corpo a sofrer com metástase e depois pode enviar as células cancerosas para outros lugares. Mas há algum tempo foi desenvolvido um teste para o chamado linfonodo sentinela, que é o que primeiro que manifesta a metástase. Se o teste da Fabíola desse negativo antes da mastectomia ela não precisaria se submeter ao esvaziamento axilar em 95% dos casos. Em apenas 5% a metástase se manifesta um pouco mais tarde, depois de uma análise mais aprofundada do material em laboratório. Aí o esvaziamento axilar é feito dias ou semanas depois.

No fim saímos do consultório com a cirurgia marcada e toda a documentação pronta para ser enviada ao convênio. E isso são cenas de um próximo post.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Humor é fundamental

Pra não ficar só nas coisas mais sentimentais, o que estava tragicômico eram as conversas telefônicas do Alim com a Fabíola no período pré-operatório: "Oi, tudo bem?" "Tudo bem, e você? Tem conseguido dormir à noite?" "Mais ou menos, e você? Tá com muita dor?" "Nem tanto. E como você está psicologicamente?" "Um pouco ansioso." "Como foi a sua biópsia? A minha doeu, e a sua?" E por aí vai. Trocavam figurinhas sobre biópsia, exame de sangue, exame do coração...

Na comemoração de aniversário dos dois (que pra completar fazem aniversário com 13 dias de diferença), a Fabíola perguntou, antes de cortar o bolo, logo depois do "Parabéns": "Adivinhem qual vai ser o desejo dos dois? É o mesmo pros dois aniversariantes!" Foi só risada. Aliás, acho que as risadas por aqui continuam mais numerosas que as lágrimas, mesmo neste período.