segunda-feira, 10 de março de 2008

Suspeitas

A tempestade vinha se formando de um jeito meio confuso desde agosto do ano passado. Um belo dia, ao sair do banho no meio de uma de nossas muitas conversas de banheiro, a Fabíola me perguntou, apontando para o seio direito: "Você não acha que este mamilo está um pouco afundado?" "Você está vendo coisa," respondi. Naquela altura do campeonato só mesmo ela enxergava aquilo. Ninguém de fora percebia, nem mesmo eu que a conheço tão bem. E sabendo quanto ela é encanada eu me limitei a tirar sarro.

Já em setembro vi um pequeno afundamento, sim. Ela havia estado no consultório do nosso ginecologista em março e só deveria voltar um ano depois, mas minha irmã não é de deixar essas coisas pra lá. Voltou ao ginecologista por precaução.

Aparentemente aquele afundamento ligeiro, muito ligeiro, não era motivo de preocupação. A Fá é saudável, não fuma, se cuida, não tem casos de câncer de mama na família e tinha só 34 anos. Nada pra se preocupar, mas o nosso ginecologista também não deixa as coisas pra lá. Pediu outra ultrassonografia de mamas além daquela de março.

A ultrassonografia mostrou um nódulo pequeno na mama direita. "Eu não gosto de nódulo" -- ainda lembro da Fabíola reclamando com aquele ar brincalhão de bebê carente que ela faz quando quer mexer comigo. Eu também não, mas tenho uns 5 ou 6 espalhados pelas duas mamas, disse. Já são de estimação. Estão lá e não atrapalham ninguém. Um deles apareceu há alguns anos e sumiu sozinho um tempo depois. Tento monitorá-los uma vez por ano -- quando não enrolo e acabo deixando passar a época certa da consulta.

Na primeira vez que apareceu um nódulo na minha mama eu me assustei, mas depois descobri que é normal as mulheres terem esses nódulos e conviverem com eles. Muitos deles são apenas formações gordurosas que desaparecem sozinhas. Por isso o ginecologista receitou vitamina E para a Fá: provavelmente ajudaria a dissolver o nódulo.

Acontece que o mamilo da Fabíola não parava de afundar. "O bico tá afundado," ela dizia ao sair do banho. "O bico tá cada vez mais afundado," repetia naquele tom brincalhão. Até que em dezembro, com "o bico afundado" de vez, concluiu que tinha de voltar ao médico. Dessa vez, além da ultrassonografia, ele pediu uma mamografia.

As conversas de banheiro iam ficando mais perigosas. Aquele momento do dia em que a Fá chegava tarde da escola e eu ia me preparar pra dormir era muitas vezes o único que tínhamos para um papo de irmãs. Era a hora das novidades, brincadeiras e reclamações. Mas cada vez que a Fabíola levantava o braço direito eu ia notando que a pele do seio repuxava. Comecei a ficar preocupada. Minha pouca cultura no assunto dizia que pele de mama repuxada é mau sinal. "Você já foi fazer os exames?" eu perguntava. "Vou fazer quando entrar em férias," ela respondia. Eu sabia que ela, ao contrário da irmã, não ia deixar o tempo passar pra fazer o exame, mas começava a ter um estranho sentido de urgência. Dizem que "pouco conhecimento é algo perigoso". Quem sabe meu pouco conhecimento de câncer de mama estivesse me assustando um pouco além da conta, mas o fato é que eu comecei a ficar apreensiva.

Eu não queria assustar a minha irmã. A Fabíola é do tipo que quando vê uma reportagem sobre câncer de próstata é capaz de ficar com medo de também ter. Mas eu mesma estava um pouco apavorada. Simplesmente não conseguia imaginar minha vida sem a minha irmã. A morte dos que a gente ama é sempre difícil -- nada mais clichê. Mas pra mim é menos difícil imaginar minha vida sem um dos meus pais. A hora deles está naturalmente mais próxima. Os dois passaram de 65. Mas a Fá... simplesmente não era a hora dela. Muito menos era a hora de eu, muito egoisticamente, viver sem ela.

Quando a Fá nasceu eu tinha 1 ano e 3 meses de idade. Deixei a parentada toda comovida porque, ao vê-la na maternidade no colo da minha mãe, disse: "nenê querido!" A coisa mais fofinha! Obviamente a fofura só durou até ela chegar em casa. Dali em diante parece que foi uma ciumeira só. E de lá pra cá meus pais perderam a conta das vezes em que ouviram a Fabíola chorar dizendo "a Cristiana me bateu!" De fato sempre tivemos a relação às vezes meio alérgica de unha e carne. Os descolamentos dóem, a cutícula machuca quando maltratada, as unhas às vezes crescem demais e às vezes ficam muito curtas. Mas na maior parte do tempo a relação, além de próxima, é harmoniosa. Perder a Fá seria mais que perder um pedaço de mim mesma. Por algum motivo inexplicável depois de adulta, passados os arranca-rabos da adolescência e as complicações de se dividir um quarto, ela voltou a ser a minha bebê.

Não dava pra falar dos meus medos pra ninguém: só para o Rô. Foi só com meu namorado que desabafei. Uma das grandes bênçãos da minha vida é ter um namorado equilibrado. Além de tudo havíamos passado juntos naquele semestre pelo segundo estágio do câncer de mama da mãe dele. Ele só tinha palavras sensatas e consoladoras pra me dizer. Mas eu não sosseguei enquanto a Fá não fez os benditos exames. E acho que aquele foi um dos únicos momentos de "sossego" que tive nos últimos três meses.

Um comentário:

Unknown disse...

Olá, sua irmã está bem?